O STF (Supremo Tribunal Federal) formou maioria nesta terça-feira (11) para decidir que a corte analisará se ocultação de cadáver cometida durante a ditadura militar tem proteção da Lei da Anistia, segundo o entendimento de que a prática é um crime é permanente, uma vez que fica sem solução.
Até a noite desta terça, há seis votos para confirmar o entendimento do ministro Flávio Dino de que o caso de ocultação de cadáveres cometidos na guerrilha do Araguaia tem repercussão geral, o que significa que a decisão tomada valerá para todos os processos semelhantes em tramitação no país.
No voto, no entanto, Dino afirma não se tratar de uma revisão da Lei da Anistia, já referendada em outras ocasiões pelo Supremo, mas de uma particularidade. Ele argumenta não ser possível anistiar atos futuros e que a prática é vedada pela Constituição.
“Ora, quem oculta e mantém oculto algo, prolonga a ação até que o fato se torne conhecido. O crime está se consumando inclusive na presente data, logo não é possível aplicar a Lei de Anistia para esses fatos posteriores”, diz o relator.
A aplicação da Lei da Anistia, segundo o magistrado, extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor, em 1979.
“A anistia somente pode alcançar atos pretéritos; não há possibilidade de se anistiar ato futuro, o que significaria um ‘vale-crime’, que é obviamente vedado pela Constituição. A Lei de Anistia teve sua validade referendada pelo STF e a presente decisão a aplica ao seu objeto: os crimes consumados anteriormente à sua entrada em vigência”, afirmou Dino.
Em 15 de dezembro, Dino decidiu que o caso deveria ter repercussão geral. O recurso em discussão é do Ministério Público Federal contra acórdão do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) que permitiu que militares acusados de ocultar cadáveres durante a ditadura sejam anistiados.
Na decisão, Dino ainda citou o caso do deputado cassado Rubens Paiva, retratado no filme “Ainda Estou Aqui“, cujo corpo jamais foi encontrado.
“A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”, disse.
A discussão do caso concreto começou em 2015. O MPF apresentou uma denúncia à Justiça Federal do Pará contra os tenentes-coronéis do Exército Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura por homicídio qualificado e ocultação de cadáver cometidos durante a guerrilha do Araguaia.
Em 1973 e 1974, Curió teve participação direta na perseguição, execução e tortura de guerrilheiros do PC do B que agiam entre o norte do Tocantins e o sudeste do Pará.
Depois, foi enviado a Serra Pelada para atuar durante a febre do ouro. Tornou-se popular entre os garimpeiros, a ponto de se eleger deputado federal e prefeito de Curionópolis, cidade batizada em sua homenagem, e de liderar uma revolta contra o governo.
Ele morreu em 2022, aos 87 anos. Dois anos antes, foi recebido por Jair Bolsonaro (PL) no Palácio do Planalto. Na época, a Secom (Secretaria de Comunicação Social da Presidência) publicou texto em que classificou como “heróis do Brasil” os agentes públicos que atuaram contra a Guerrilha do Araguaia no anos 1970.
O caso de Rubens Paiva, um dos mais conhecidos crimes da ditadura, ainda não tem definição sobre a possibilidade de punir os acusados, depois de 54 anos, hoje protegidos pela Lei da Anistia.
Tramita atualmente no STF com tese semelhante ao da proposta de Dino no caso do Araguaia. Um dos recursos relacionados à morte do ex-deputado Rubens Paiva foi encerrado em 9 de janeiro. O outro, apresentado em 2021, ainda não teve decisão.
Os dois processos tratam do mesmo tema e são relatados pelo ministro Alexandre de Moraes. Por meio do caso, o STF também pode ainda rever a abrangência da Lei de Anistia. O MPF também provocou a corte em uma dessas ações para argumentar que determinados crimes cometidos pela ditadura não podem ser anistiados.
Na prática, o órgão reforça uma tese apresentada à corte outras duas vezes, mas sem julgamento há mais de uma década. Essa diferenciação permitiria o julgamento de militares e civis que fizeram parte da repressão.
O MPF entende que o período histórico não foi devidamente passado a limpo. Ainda, argumenta que o Supremo pode avaliar que não deu um recado claro o suficiente no julgamento que validou a Lei da Anistia, em 2010, e considera importante reforçar que militares devem ser mantidos distantes da política.
A anistia não voltou a ser debatida pelo STF desde a decisão de 2010 de validar os termos definidos em 1979, pelo último presidente da ditadura, o general João Figueiredo. Foram protegidos agentes que reprimiram a resistência e opositores que tenham cometido crimes no período de exceção. Parte do debate, no entanto, ficou pendente.
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) questionou trechos da decisão em que o Supremo validou a anistia a torturadores da ditadura e o PSOL entrou com pedido semelhante em 2014: querem a não aplicação da anistia a crimes praticados por agentes públicos do regime.
Na ação do PSOL, relatada pelo ministro Dias Toffoli, os despachos do relator nos últimos seis anos são somente sobre questões secundárias. Nunca houve decisão no processo. O recurso da OAB está parado no tribunal há 12 anos.

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