“O lobisomem instintivamente busca matar aquilo que mais ama.” A frase dita em 1935 por um personagem de “O Lobisomem de Londres”, filme de Stuart Walker e primeiro longa-metragem a tratar de licantropia, reverbera diretamente agora, 90 anos depois, nas escolhas de Leigh Whannell para sua visão particular de uma das mitologias mais populares das histórias de monstro.
A construção dramática do novo filme do cineasta se desvia da violência contra mulher e do “gaslight” vistos em “O Homem Invisível“, de 2020, e se direciona à intimidade de um casal e da filha pequena às voltas com o ataque feroz da terrível criatura noturna que quer devorá-los.
A abordagem neste “Lobisomem” de Whannell prioriza o núcleo familiar e quaisquer ações catalisadoras do horror ou do suspense dependem da dinâmica do trio, cuidadosamente construída em cenas ordinárias que ilustram os afetos entre uns e outros, as crises iminentes e as possibilidades de cura.
“Lobisomem” é, em especial, uma história de acerto de contas. Blake, vivido por Christopher Abbott, tem questões não resolvidas com o pai, o que o faz se dedicar à filha com o objetivo assumido de não deixar que ela se traumatize.
O desejo fracassa porque, como ele mesmo diz, a ânsia de evitar o desconforto pode causar perturbações ainda maiores. O próprio Blake se depara com isso ao encarar a criatura que ainda assombra os arredores da antiga casa de sua infância.
A fuga com a garota e a esposa, papel de Julia Garner, sofre uma guinada quando Blake começa a ser tornar ele mesmo o perigo do qual se deve fugir, o que permite ao filme se aproximar, de maneira inesperada, a outro grande tratado recente sobre paternidade, “Armadilha“, de M. Night Shyamalan.
Mesmo nas cenas de mais impacto visual, “Lobisomem” adere à psique alterada de Blake e expõe esteticamente suas sensações como parte de um processo de destruição descontrolada cuja maior dor é menos a do corpo do que a da repercussão na família.
O desespero crescente em “Lobisomem” vem da irreversibilidade latente da metamorfose, o que o difere de boa parte do cânone licantropo mais conhecido, como o clássico homônimo de 1941 com Lon Chaney Jr ou o bem-humorado “Um Lobisomem Americano em Londres” em 1981. Ambos lidam com regras claras do monstro, como as reações à lua cheia, a fragilidade a objetos de prata e a remissão à forma humana com a chegada do Sol.
O roteiro de Whannel e da esposa, Corbett Tuck, opta pela perspectiva mais crua, sem mediações que lidem com eventuais mecanismos de salvação ou de enfrentamento à ameaça. Isso amplifica o senso de tragédia, além de reduzir metáforas grosseiras sobre civilização versus barbárie, sempre um caminho fácil nesse tipo de história relativa a transformação de humano em fera.
Em benefício da visceralidade de uma única noite que, em algum momento, precisará ser concluída, tal qual os dramas aqui em jogo, “Lobisomem” se reduz ao mínimo, inclusive nos efeitos visuais, muitos deles práticos e que servem bem mais ao choque familiar do que a desviar a atenção do espectador ao que de fato representam àquele núcleo.
Se em 2023 o escritor Ruy Castro escreveu nesta Folha sentir falta de um lobisomem “chorando seu triste destino”, talvez aqui ele enfim o encontre.

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