terça-feira , 28 outubro 2025
| Cidade Manchete
Lar Economia Haddad distorce fatos para alegar “herança maldita”
Economia

Haddad distorce fatos para alegar “herança maldita”


O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem desempenhado papel central na estratégia do governo de atribuir à gestão anterior o descontrole das contas públicas — rotulado como “herança maldita”. Para sustentar o discurso, trechos de um vídeo em que o ministro apresenta informações distorcidas vêm sendo replicados nas redes sociais por apoiadores petistas.

Quem deu a partida foram lideranças do PT, incluindo o perfil oficial do partido e o da ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, após declarações de Haddad em audiência na Câmara – encontro que, por sinal, foi encerrado após bate-boca do ministro com os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Carlos Jordy (PL-RJ).

As alegações de Haddad tentam justificar o déficit primário acumulado nos dois primeiros anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – R$ 241,5 bilhões, ou 2,2% do PIB – e desqualificar o superávit registrado no último ano da gestão de Jair Bolsonaro (PL). O resultado de 2022, de R$ 54,9 bilhões ou 0,6% do PIB, foi o único saldo positivo das contas primárias federais de 2014 até hoje.

Haddad atribuiu o número de Bolsonaro ao que chamou de “calote” nos governadores e nos precatórios, “barbeiragem” na privatização da Eletrobras e à “depenação” da Petrobras. “Assim, qualquer um faz superávit”, afirmou o ministro.

Uma análise dos fatos, no entanto, desmonta os principais pontos dessa narrativa.

1. Dividendos da Petrobras e a acusação de “depenação”

Um dos argumentos inverídicos do ministro diz respeito à distribuição recorde de dividendos da Petrobras em 2022 — mais de R$ 200 bilhões. Segundo Haddad, o governo Bolsonaro teria “depenado” a estatal para inflar artificialmente o superávit primário.

A distribuição, no entanto, se deu graças a resultados extraordinários – lucro recorde de R$ 188,3 bilhões, com aumento de 77% em relação ao ano anterior – obtidos com a alta global no preço do petróleo e ganhos por melhoria de gestão.

A política de dividendos aprovada pelo conselho de administração, respeitando as regras de governança corporativa, só foi possível após anos de recuperação financeira. O saneamento começou em 2016, no governo Michel Temer (MDB), com políticas de desinvestimento, austeridade e foco na atividade principal da empresa – práticas que tiveram sequência na gestão Bolsonaro.

Durante os governos do PT, a Petrobras sofreu perdas bilionárias – relacionadas ao congelamento dos preços dos combustíveis e a investimentos de má qualidade – e protagonizou o maior escândalo de corrupção da história brasileira, revelado pela Operação Lava Jato. A reversão desse quadro, com o fim das gestões petistas, foi fundamental para que a empresa voltasse a distribuir lucros.

Além disso, o próprio governo Lula se beneficia das distribuições de dividendos. Em 2023 e 2024, a Petrobras repassou à União cerca de R$ 30 bilhões por ano, recursos que ajudaram a fechar as contas do Tesouro.

VEJA TAMBÉM:

2. A “barbeiragem” da privatização da Eletrobras

Haddad também criticou a privatização da Eletrobras, aprovada pelo Congresso em 2021 e executada em 2022, classificando o processo como uma “barbeiragem” feita “na bacia das almas”, que teria gerado perdas ao patrimônio público e ajudado no resultado fiscal.

“Superávit primário desse jeito qualquer um faz. Dando calote, vendendo patrimônio público”, disse Haddad. No entanto, a receita da privatizações e concessões não entram no cálculo do resultado primário. A União só pode usar os recursos para abater a dívida pública, conforme determina a legislação. Portanto, não inflou o superávit do governo Bolsonaro.

O objetivo da operação foi de reduzir o peso fiscal de uma estatal dependente de altos investimentos e vulnerável à ingerência política. A venda manteve o poder de veto do governo em decisões estratégicas (golden share) e destinou parte dos recursos à modicidade tarifária e ao equilíbrio do setor elétrico. Trabalhadores também puderam usar o FGTS para comprar ações da empresa, o que ampliou a base de investidores e democratizou o acesso ao mercado.

A crítica também ignora o histórico de má gestão e aparelhamento político da estatal em governos anteriores, inclusive do próprio PT. O mercado interpretou a privatização como uma forma de blindar a companhia da interferência que minou sua eficiência no passado.

Lula já falou em reestatizar a Eletrobras pelo menos três vezes. Em fevereiro de 2023, sinalizou que a AGU poderia contestar os termos do processo. No mês seguinte, chamou a privatização de “crime de lesa-pátria”. E, em maio de 2023, voltou ao tema ao criticar a governança da empresa e ajuizar uma ação no STF para contestar o modelo de voto proporcional.

3. A redução do ICMS dos combustíveis e a compensação aos estados

O ministro da Fazenda também critica a política de desoneração do ICMS sobre combustíveis em 2022, adotada pelo governo Bolsonaro em meio à escalada internacional dos preços do petróleo causada pela guerra entre Rússia e Ucrânia.

Haddad acusa o ex-presidente de ter dado um “calote” nos governadores ao prometer uma compensação federal pela perda de arrecadação estadual — compromisso que, segundo Haddad, só foi cumprido em 2023, já na gestão Lula, com o repasse de R$ 30 bilhões.

“Bolsonaro deu um calote nos governadores, tomou o ICMS sobre combustíveis com a promessa de pagar”, disse Haddad, classificando a medida como uma “barbeiragem” usada para “baixar artificialmente o preço da gasolina no ano eleitoral”.

Na época da desoneração, diante da pressão inflacionária, o governo Bolsonaro tomou a decisão de reduzir tributos federais e patrocinar uma queda no ICMS (tributo estadual) sobre os combustíveis, em articulação com o Congresso. A estratégia evitou medidas heterodoxas, como congelamento de preços, que historicamente geraram distorções.

Os valores de compensação aos estados pela perda de arrecadação com o ICMS foram parcialmente previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023. Essa previsão ocorreu no contexto da PEC da Transição (Emenda Constitucional 126/2022), aprovada em dezembro de 2022, ainda sob o governo Bolsonaro, mas com participação ativa da equipe de transição do presidente eleito Lula.

O acordo formal com os estados, que definiu os montantes e o cronograma de pagamento, só foi firmado em 2023, já no governo Lula, após pressão dos governadores.

4. Precatórios: manobras aliviaram contas de Bolsonaro, mas também de Lula

Haddad também atacou o que chamou de “calote” dos precatórios promovido em 2021, quando o Congresso aprovou as Emendas Constitucionais 113 e 114, criando um teto anual de pagamento dessas dívidas até 2026. O mecanismo permitiu excluir grande parte dos precatórios do teto de gastos, aliviando artificialmente o resultado primário.

Apesar da crítica, o governo Lula vem utilizando estratégia semelhante. Em 2024, por exemplo, foram pagos R$ 73 bilhões em precatórios via créditos extraordinários, mas esses valores não entraram no cálculo do déficit, que oficialmente ficou em R$ 11 bilhões. Na prática, o rombo real seria de R$ 84 bilhões, mais do que o triplo da meta de R$ 27,7 bilhões.

Em 2023, o STF validou essa prática ao julgar a ADI 7064, permitindo que os pagamentos até 2026 fiquem fora das regras fiscais — inclusive o novo arcabouço. O prazo, no entanto, expira em 2027, o que pode pressionar ainda mais as contas públicas caso não haja mudança legal ou nova decisão judicial.

VEJA TAMBÉM:

5. Taxa de juros e a “culpa” de Campos Neto, segundo Haddad

Além das questões relativas ao superávit primário, outro argumento que Haddad tem repetido para reafirmar a “herança maldita” de Bolsonaro diz respeito à taxa básica de juros, que chegou a 15% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom).

Haddad demonstra preocupação com o patamar atual da Selic, mas isenta de responsabilidade o presidente atual do Banco Central, Gabriel Galípolo, em contraste com a postura crítica que o governo e o PT mantinham em relação so seu antecessor, Roberto Campos Neto.

Em entrevista à TV Record News na noite desta terça-feira (24), Haddad apontou a gestão anterior do BC como responsável pela manutenção da taxa em nível tão elevado.

“Estou preocupado, evidentemente. É uma taxa de juros muito restritiva, muito acima da inflação projetada”, afirmou. Ele alegou que a alta já estava “contratada” desde a última reunião sob Campos Neto, em dezembro de 2024. “Essa alta, sendo muito honesto, quem é do ramo sabe, foi contratada na última reunião da qual participou o Roberto Campos em dezembro. É como se tivesse estabelecido uma contratação futura da taxa”, reclamou.

O argumento não se sustenta. Ao falar em aumento “contratado” da Selic, o ministro fez referência aos aumentos de 1 ponto porcentual realizados nas duas primeiras reuniões do Copom em 2025. Tais reajustes foram sinalizados pelo comitê em dezembro de 2024, na última reunião sob o comando de Campos Neto.

Porém, após essas duas altas, o Copom promoveu outros dois aumentos na Selic, que somaram 0,75 ponto. E, de qualquer forma, todas as quatro reuniões de 2025 foram comandadas por Galípolo, e em todas a decisão sobre os juros foi unânime. Dos nove integrantes da atual formação do Copom, sete foram indicados por Lula.

Mesmo com os critérios de Haddad, governo atual segue deficitário

O economista Fernando Ulrich, da Liberta Investimentos, refez os cálculos fiscais a partir de dados públicos da Secretaria do Tesouro Nacional com base nos critérios utilizados por Haddad — ou seja, excluindo receitas de privatizações, dividendos de estatais e o não pagamento de precatórios — e concluiu que o resultado do governo Lula ainda é pior.  

Segundo Ulrich, se os R$ 55 bilhões de superávit de 2022 forem ajustados por essas variáveis, o saldo se transforma em um déficit de R$ 50 bilhões. Para 2023, o déficit corrigido sobe para R$ 171 bilhões, e em 2024, deve ficar em torno de R$ 64 bilhões. O cálculo também inclui ajustes na arrecadação de ICMS, como a reoneração da gasolina.

“Mesmo considerando a ótica e os critérios de Haddad, o governo atual ainda estaria no vermelho”, afirmou o economista em comentário no YouTube. “O que está sendo feito no Ministério da Fazenda com as contas públicas é destruição completa, é um buraco fiscal por decisão por falta de compromisso no controle das contas públicas, porque esta é a natureza deste governo”.



Source link

Deixe um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Artigos relacionados

Economia

Câmara aprova urgência para votar aumento do judiciário

A Câmara dos Deputados aprovou requerimento de urgência para o Projeto de Lei...

Economia

Governo desiste de “jabuti” para apresentar medidas contra rombo

Uma semana após o anúncio de que iria reenviar ao Congresso algumas...

Economia

Haddad quer acabar com incentivos para painéis solares

Quem apostou na compra de painéis solares para gerar sua própria energia...

Economia

Gmail tem 183 milhões de senhas expostas; saiba se a sua foi afetada

Um novo megavazamento de dados expôs cerca de 183 milhões de endereços...