O acordo que viabilizou a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2026 pelo Congresso conseguiu, na prática, normalizar o fracasso do arcabouço fiscal. Além de permitir que o governo mire apenas o piso — e não o centro — da meta fiscal, o texto incorporou um dispositivo que autoriza a retirada de até R$ 10 bilhões do cálculo do resultado primário das estatais, em um movimento diretamente relacionado à crise financeira dos Correios.
Também serão desconsideradas, para fins de cumprimento da meta das estatais, despesas de empresas do Grupo Petrobras, do Grupo Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar) e até R$ 5 bilhões destinados ao Novo PAC.
As negociações entre Executivo e Legislativo, ancoradas em um calendário de liberação de emendas parlamentares, consolidaram uma troca política: mais espaço para despesas do governo em ano eleitoral em troca de garantias de recursos para o Congresso a tempo da campanha nos estados.
Na esteira desse acordo, as flexibilizações reduziram ainda mais a credibilidade da regra de equilíbrio das contas públicas desenhada pelo próprio governo.
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Para economistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a retirada recorrente de despesas da meta fiscal ao longo da gestão petista vem normalizando o chamado “modo parafiscal” de condução das contas públicas. Na prática, o Ministério da Fazenda tem excluído da contabilidade oficial do Orçamento tudo o que consegue, passando a contabilizar os gastos por fora.
É como anotar despesas em uma planilha separada e fingir que elas não existem, embora precisem, de uma forma ou de outra, ser pagas — já que acabam incorporadas à dívida pública.
Carlos Henrique, CEO da Sttart Pay, afirma que o mecanismo, inicialmente aprovado para acomodar imprevistos como as enchentes ocorridas em 2024 no Rio Grande do Sul, passou a fazer parte de uma estratégia deliberada. “Os sucessivos ‘puxadinhos’ no arcabouço são o reflexo de uma escolha política de reclassificar despesas e utilizar medidas parafiscais para contornar a meta de resultado primário”, diz.
“Isso permite ao governo ampliar o gasto público em áreas consideradas estratégicas para sua base de apoio, como programas sociais e investimentos, sem que isso se traduza em um descumprimento formal da regra fiscal, criando uma narrativa de sucesso no curto prazo, na qual o governo ‘cumpre a meta’ enquanto expande suas políticas.”
Para Alexandre Manoel, da Global Intelligence and Analytics, a tática adotada equivale a admitir que o esforço para cumprir o arcabouço fiscal pelo lado da despesa simplesmente não está funcionando. “O governo não tem necessidade nem sequer de mudar a meta”, afirma. “Porque, quando você tem um problema, você vai lá, muda a lei, abre uma exceção — e cumpre.”
Segundo ele, o mercado já incorporou essa dinâmica. “Todo mundo já sabe que a meta, de algum jeito, será cumprida, mesmo sem um controle efetivo da trajetória da dívida pública, que já cresceu cerca de 8 pontos percentuais do PIB neste governo”, diz. “O que o governo tem feito é assumir o fracasso da regra.”
Lei do Orçamento autoriza mirar piso da meta
Nesse mesmo sentido, a inclusão na LDO da possibilidade de o governo mirar o piso da meta apenas legalizou o que já vinha ocorrendo, uma vez que o objetivo fiscal vem sendo cumprido apenas dentro da margem de tolerância da regra, de 0,25% do PIB.
O uso do limite da banda inferior levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a advertir o governo, que precisou se resguardar de possíveis punições.
“Considerando que já tivemos uma presidente da República afastada por descumprimento de regras fiscais, acho bastante prudente, do ponto de vista da equipe econômica, buscar essas exceções legais”, afirma Manoel.
“Os gestores e técnicos têm receio de ficar com o ‘CPF a prêmio’. Tanto eles quanto as próprias autoridades sabem que, em uma eventual alternância de poder, existe o risco de serem posteriormente penalizados pelos órgãos de controle.”
O movimento ganha ainda mais relevância porque, para 2026, o arcabouço fiscal estabelece uma meta central mais ambiciosa, de superávit primário de 0,25% do PIB, algo perto de R$ 34,3 bilhões. A LDO aprovada pelo Congresso, no entanto, autoriza o governo a mirar apenas o piso da meta, equivalente a resultado zero.
Na prática, o Orçamento prevê que as despesas vão superar as receitas em R$ 16,9 bilhões. Esse déficit, porém, deixa de aparecer no resultado oficial para fins de cumprimento da meta porque R$ 55,1 bilhões em gastos com precatórios foram autorizados a ficar fora do cálculo fiscal.
A trajetória de uma ideia fadada ao fracasso
Criado em 2023 para substituir o teto de gastos do governo Michel Temer (MDB), o arcabouço fiscal surgiu como uma alternativa de flexibilidade. O novo regime permitiria algum crescimento das despesas, desde que compensado pelo avanço da arrecadação. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a defini-lo como uma “régua de confiança do governo” no compromisso com a estabilização da dívida pública.
Quase três anos depois, porém, os limites dessa estratégia são mais do que evidentes. A incorporação de exceções, a autorização de abatimentos e a permissão para que o governo opere sistematicamente no piso da meta fiscal fazem com que o arcabouço deixa de funcionar como âncora fiscal e passa a atuar como instrumento de acomodação política do gasto. O ajuste, que deveria ser estrutural, acaba se tornando essencialmente contábil.
O principal entrave para o cumprimento da regra está no chamado nó das despesas obrigatórias. “A finalidade do arcabouço seria trazer segurança em relação à estabilização da dívida pública. Mas ele não consegue. O arcabouço, do jeito que existe, não entrega isso, sobretudo pelo nó das despesas obrigatórias”, afirma Murilo Viana, analista de contas públicas da Finance Consultoria.
Essas despesas engessam o Orçamento porque a maior parte dos gastos federais — como aposentadorias, benefícios sociais, salários do funcionalismo, pisos constitucionais de saúde e educação e precatórios — cresce automaticamente, por força de leis e da Constituição, acima do limite do arcabouço que condiciona o crescimento do gasto ao da receita.
Nesse contexto, as chamadas exceções parafiscais funcionam como válvulas de escape para acomodar gastos que não cabem no Orçamento. O resultado é um crescimento do gasto público muito superior ao inicialmente previsto.
Segundo dados da Instituição Fiscal Independente (IFI), ao considerar programas sociais como o Pé-de-Meia, os gastos destinados à Defesa e o socorro às empresas afetadas pelo tarifaço imposto pelos Estados Unidos — estimado em R$ 9,5 bilhões —, as deduções da meta fiscal podem chegar a R$ 157,3 bilhões no período entre 2024 e 2026.
“Considerando os números da Lei Orçamentária Anual, a despesa primária deve crescer cerca de 17% em termos reais entre 2023 e 2026”, afirma Manoel. Isso é muito mais do que o arcabouço fiscal previa, sob qualquer ótica.”
Segundo ele, entre dezembro de 2022 e outubro de 2025, a despesa aumentou em termos nominais R$ 308 bilhões — quase três vezes mais do que no período entre o fim do governo Temer e o fim do governo Bolsonaro, intervalo este que ficou marcado pela pandemia.
Mesmo com as exceções, Viana pondera que abandonar completamente a regra teria custos institucionais relevantes. “Acabar com o arcabouço seria lido pelo mercado como ‘agora vale tudo’, e isso não seria bem recebido”, diz. “Mesmo enfraquecido, ele ainda funciona como um limite mínimo para as expectativas.”
Viana cita o freio estabelecido pelos bloqueios e contingenciamentos que o governo precisa fazer se as despesas avançarem o limite. “O arcabouço também é um dos fatores que impedem o governo Lula, por exemplo, de injetar dinheiro para salvar os Correios de forma irresponsável”, diz o consultor.
Para Manoel, porém, a discussão sobre o cumprimento formal da meta perdeu relevância. “Nenhum analista de mercado vai ficar mais ou menos satisfeito se o governo disser que cumpriu ou não a meta, já que não faz diferença real para a trajetória das contas públicas”, afirma.
“Na prática, a LDO apenas sacramenta uma distorção e mostra que do ponto de vista econômico, a regra fiscal não tem valor nenhum.”



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