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David Lynch, genial, foi último grande inventor do cinema – 16/01/2025 – Ilustrada


Tão estranha quanto a obra de David Lynch é a notícia de sua morte. Como pensar no audiovisual sem novas criações de um dos cineastas mais inventivos do cinema moderno, um dos poucos a terem criado uma obra que se pode chamar, sem medo de exageros, de verdadeiramente autêntica, única?

Lynch já estava aposentado do cinema havia 18 anos —nunca deixou de produzir peças fílmicas, entre curtas, vídeos musicais e mesmo o consagrador retorno à TV com a segunda parte da série “Twin Peaks” em 2017, mas a mídia que o eternizou, o cinema, ele havia abandonado em um já longínquo 2006, com “Império dos Sonhos”. Muito embora a cinefilia mundial ainda nutrisse esperanças de que, de modo inusitado e surpreendente como seus filmes, ele de repente ressurgisse, anunciando um novo longa-metragem.

Quando o cinema dava ares de ser uma arte cujas possibilidades já pareciam quase que totalmente exploradas, na ressaca pós-anos 1960 e pós-contracultura, Lynch apareceu e mostrou o contrário. Seu primeiro longa, “Eraserhead”, de 1977, já trazia a tônica de sua obra —a estranheza.

Ela também estava no cerne de seu segundo filme, “O Homem Elefante”, de 1980, que o tornou de fato conhecido. O bizarro enquanto forma de reproduzir o mundo, tão caótico e inexplicável como a vida real, mas embalado em uma estética onírica, de uma realidade paralela, com regras próprias.

Muitas pessoas, na falta de saber como descrever sua poética, chamam seu cinema de “surreal”, mas trata-se de um grande equívoco de ordem conceitual. Os surrealistas —com o espanhol Luís Buñuel, outro gênio, à frente— recriavam no cinema um mundo normal e usavam instantes de fuga da lógica, de absurdo e de onírico, como elementos subversivos a ele; como forma de criticá-lo, satirizá-lo. Era um uso sobretudo político do estranhamento.

Já, em Lynch, o estranho é a regra, é o normal. Tudo o que de atordoante acontece em suas obras é parte orgânica e indissociável do universo que ele cria ou de como ele vê o mundo.

Lynch foi, acima de tudo, um criador de mundos. Seu terceiro longa, “Duna”, de 1984, pode ter sido um retumbante fracasso, mas é inegável ao espectador que estava ali diante de uma personalidade criativa autêntica, tão mirabolante quanto o autor da obra escrita, Frank Herbert. Talvez tenha sido justamente o choque entre gênios artísticos tão distintos e demarcados que tenha tornado o longa um erro —mais ainda do que o fato de Lynch não ter tido o controle sobre o corte final.

A matéria-prima fundamental para Lynch era sua própria mente, ou melhor, era como ela filtrava fatos e imagens que observava ao seu redor. O diretor ainda era uma criança quando, um dia, presenciou uma cena que o marcou para sempre —viu uma mulher completamente nua andando pela rua. Sabe-se lá quem era ela, por que estava sem roupa, o que lhe havia acontecido ou mesmo o que aconteceria a ela logo depois.

Essa imagem ficou fixa em sua mente, e vários anos depois foi um dos elementos que contribuiu para a gênese de uma de suas obras-primas, “Veludo Azul”, de 1986. No filme, a mulher nua em perambulação foi encarnada por Isabella Rossellini, em uma trama insólita e sexy, passada em uma cidadezinha no interior dos EUA, universo que tanto forneceu inspiração para o diretor.

Foi o filme que lhe deu controle total sobre suas obras a partir dali, e praticamente o diretor nunca mais fez nada menos do que formidável. Em 1990, mostrou que sua inventividade poderia revolucionar também outras mídias, e foi o que fez na TV, com a série “Twin Peaks”.

A história em torno da morte de Laura Palmer, uma adolescente interiorana que guardava vários segredos, permitiu a criação de uma galeria de tipos esquisitíssimos, cheios de manias, obsessões, taras —e, não raro, humor.

A série fez um enorme sucesso, inclusive no Brasil, levando à TV aberta temas e uma atmosfera carregada que hoje em dia parecem inviáveis. Se as séries de TV atuais são tão mais elaboradas e prestigiadas pela crítica do que eram no passado, o formato tem uma dívida inegável com “Twin Peaks”.

Seu longa seguinte, “Coração Selvagem”, de 1990, foi feito quando Lynch estava no ápice de seu gosto pelo bizarro. Mesclando referências lúdicas a “O Mágico de Oz” a personagens extremamente barra pesada, o filme é ainda hoje algo meio isolado na história do cinema —impossível de copiar e, apesar das referências, impossível pescar ali algum traço de imitação. Ganhou uma merecida Palma de Ouro em Cannes.

Depois de condensar o universo de “Twin Peaks” em uma versão fílmica, “Fire Walk with Me”, de 1992, Lynch esperou cinco anos até voltar com um novo longa. “Estrada Perdida” é ainda hoje um de seus filmes mais desafiadores —e também um dos mais deliciosos de assistir.

Para a surpresa de seus fãs —mas nunca sua decepção—, em 1999 Lynch fez o que talvez seja o seu filme mais “normal”. “Uma História Real” mostrava um velhinho que viaja em um cortador de gramas para reencontrar seu irmão, depois de ficar anos sem encontrá-lo. Uma face mais humana, terna, do cineasta aparecia ali, muito embora o longa também traga uma reflexão sobre a América profunda a partir da ótica inusitada do cineasta.

Talvez o seu maior momento na carreira seja o que veio logo a seguir. “Cidade dos Sonhos”, de 2001, o filme aberto por excelência, sobre uma aspirante a atriz que tenta a sorte em Hollywood e encontra uma mulher desmemoriada. A certa altura, a narrativa é rompida, e uma outra história com elementos em comum com a primeira passa a ser narrada.

O filme era puro deleite estético e promovia um intrigante exercício de decifração, com diversos elementos cênicos de significado obscuro, como uma caixa azul e uma chave. “Não faço ideia do que sejam”, o cineasta limitava-se a dizer, com seu humor peculiar, quando indagado sobre suas significações.

E o mesmo senso de enigma permeou seu último longa, “Império dos Sonhos”, que ainda hoje dá nó na cabeça das pessoas que buscam algum sentido no que aparece em cena. O filme foi o desfecho estético no cinema à altura da carreira deste grande gênio, talvez o último inventor dessa arte. “O filme deve se bastar. É um absurdo o cineasta dizer com palavras o que significa um filme em particular”, Lynch afirmava.

E, de fato, se tem uma obra que se bastava por si foi a que ele próprio criou. E que sempre despertará sensações inesperadas mas, sobretudo, fascinará quem tiver o privilégio de entrar em contato com ela.



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