terça-feira , 28 outubro 2025
| Cidade Manchete
Lar Economia Teto da dívida pública sai da pauta do Senado
Economia

Teto da dívida pública sai da pauta do Senado



O projeto que estabelece um teto para o endividamento da União — e que, na prática, pode resultar em moratória da dívida pública — foi retirado da pauta da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado desta semana. A assesssoria do senador Oriovisto Guimarães (PSDB-PR), relator da proposta, informou que deverão ser feitos “ajustes” e não há previsão votação.

O recuo do relator ocorre após uma onda de críticas do Banco Central, da equipe econômica e do mercado financeiro. Embora nem o BC nem o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenham se manifestado publicamente, fontes ouvidas pela Gazeta do Povo confirmam o intenso ruído gerado nos bastidores.

Na prática, a proposta de autoria do senador Renan Calheiros (MDB-AL) regulamenta artigos previstos na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que vêm, há décadas, sendo postergados, exatamente porque abrem possibilidade de calote da dívida pública.

Um deles é da Constituição, que dá ao Senado a função de definir os “limites gerais para a dívida total da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Outro artigo da LRF estabelece que, em até 90 dias, o Presidente da República precisa enviar ao Senado “os números da dívida consolidada da União, dos Estados e dos Municípios”.

O texto de Calheiros estabeleceu duas travas para o endividamento federal: a dívida bruta não poderia superar 80% do Produto Interno Bruto (PIB) nem ultrapassar 6,5 vezes a receita corrente líquida da União. O parecer do relator incluiu no limite de 80% do PIB apenas as dívidas da União, excetuando Estados e municípios, que têm limites próprios.

Pelo projeto, quando isso acontecer, a União ficaria impedida de emitir novos títulos públicos, restringindo de forma drástica sua capacidade de financiamento. Em síntese, a medida poderia paralisar a máquina pública — algo semelhante ao shut down que ocorre nos Estados Unidos quando não há acordo sobre o teto da dívida. E, em última instância, o calote dos títulos do Tesouro.

Basta observar os números para entender a preocupação que se instalou entre economistas. Hoje, a dívida bruta de todos os entes da federação já atinge 77,6% do PIB e deverá fechar o ano em 80% do PIB, segundo dados do Boletim Focus do BC.

Já dívida da União — que representa 74,1% do PIB — pode atingir os 80% do PIB em até três anos, segundo projeções de mercado, que apontam para uma dívida bruta total de 84,1% do PIB em 2026, 87,3% do PIB em 2027 e 89,4% do PIB em 2028.

Banco Central sai enfraquecido

As avaliações de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo traduzem a ambiguidade da proposta. O lado positivo é colocar na mesa a discussão da necessidade da responsabilidade fiscal.

Para o economista Armando Castelar, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre), a proposta tem méritos de frear o crescimento dos gastos públicos. “O aumento de gastos é prejudicial porque o governo é o grande devedor, e a elevação da Selic encarece tanto o financiamento da dívida quanto o investimento privado”, afirmou.

A solução proposta, no entanto, é questionada. “O Parlamento tenta forçar o governo a adotar uma postura mais responsável”, diz a economista Juliana Inhasz, professora do Insper. “O problema é que, como está formulada, a regra não funciona e ainda adiciona novos riscos.”

Um dos riscos atinge o BC, que nos bastidores alertou que o projeto representaria um enfraquecimento institucional para a condução da política monetária.

Basicamente, o BC é o guardião dos títulos do governo. Por meio da compra e venda desses títulos públicos, consegue, no dia a dia, garantir liquidez à economia diante de entradas e saídas de recursos — como, por exemplo, fluxos de dólares — e controlar a inflação, mantendo a taxa Selic próxima da meta definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom).

Se a emissão de dívida ficar travada, ele perde instrumentos importantes, inclusive a realização das chamadas “operações compromissadas”, que são mecanismos utilizados para retirar o excesso de dinheiro em circulação na economia. A atuação do BC ficaria restrita a mecanismos mais lentos e menos eficazes, como depósitos compulsórios ou taxa de redesconto. “Isso reduz a capacidade prática do BC de agir contra a inflação”, explica Inhasz.

Para Manoel Pires, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre), nesse sentido, a proposta gera mais problemas do que soluções. “A política monetária é feita a partir de compra e venda de títulos públicos”, diz. “Um limite de dívida pode criar constrangimento para o BC perseguir a meta de inflação. Para o mercado, estar próximo dessa situação sempre representa um risco, podendo elevar juros e gerar nervosismo.”

No mercado financeiro, a percepção é semelhante: a medida aumentaria a incerteza, prejudicando a credibilidade do país e elevando o risco sobre os papéis da União. Outro ponto sensível é o impacto sobre as operações cambiais. Atualmente, quando a autoridade monetária atua para reforçar as reservas internacionais, injeta reais na economia, que depois precisam ser esterilizados para não pressionar a taxa de juros. Com a imposição do teto da dívida, esse mecanismo ficaria limitado.

Rigidez do Orçamento aumenta risco de moratória da dívida pública

A maior preocupação, no entanto, diz respeito ao próprio funcionamento do orçamento: com a maior parte das despesas sendo obrigatórias, seria impossível reduzir gastos de uma hora para outra se o limite fosse atingido. Nesse cenário, o governo poderia não conseguir rolar a dívida nem pagar juros, alimentando o temor de moratória.

“É possível que o governo não consiga se manter dentro dessa regra”, avalia Armando Castelar, economista do Ibre. “Com isso, o risco de calote aumenta muito, os juros sobem ainda mais, e o mercado passa a operar em um ambiente de insegurança e incerteza. Mesmo que não haja uma moratória formal, a simples dúvida já seria suficiente para elevar a percepção de risco e afetar a estabilidade financeira.”

Há dúvidas técnicas e incertezas sobre os efeitos práticos do projeto, especialmente na aplicação do artigo 31 da LRF, que estabelece punições para o descumprimento do limite de endividamento. Pelo texto, o governo fica proibido de realizar novas operações de crédito, exceto aquelas destinadas ao pagamento de dívidas mobiliárias — ou seja, títulos públicos emitidos para rolar a dívida existente.

O problema é que não está claro se essa exceção inclui o pagamento de juros ou apenas do principal. Na prática, isso significa que, embora o governo ainda pudesse emitir títulos para honrar parte da dívida, haveria risco de paralisação parcial caso os pagamentos de juros ficassem comprometidos.

Proposta não mira raiz do problema

Para Pires, a regra cria um problema que hoje não temos. “Além da possibilidade de ‘default’, a proposta atua no sintoma e não na causa”, avalia. Ele lembra ainda que o modelo americano de teto da dívida mostra a fragilidade da regra. Nos EUA, sempre que se está perto do limite, o Congresso amplia esse limite. Esse tipo de instabilidade poderia se repetir aqui”, alertou.

Castelar, do Ibre, ressalta que a proposta age tarde demais: “O problema é atacar os gastos e ter uma regra fiscal sustentável. O ‘teto de gastos’ [que vigorou no governo Michel Temer] era mais eficiente porque atacava o problema na origem. A experiência entre 2016 e 2021 mostrou melhores resultados: juros mais baixos, custo de capital menor e maior previsibilidade para investidores”, afirma.

Já a regra de limitar a dívida só vai ser acionada quando a situação se deteriorou. “Isso cria incentivos para empurrar a crise para governos seguintes”, diz. “A intenção de limitar o endividamento é positiva, mas o caminho escolhido não é o mais eficiente. O melhor seria retomar uma âncora sobre o gasto público, que já provou funcionar.”



Source link

Deixe um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Artigos relacionados

Economia

Câmara aprova urgência para votar aumento do judiciário

A Câmara dos Deputados aprovou requerimento de urgência para o Projeto de Lei...

Economia

Governo desiste de “jabuti” para apresentar medidas contra rombo

Uma semana após o anúncio de que iria reenviar ao Congresso algumas...

Economia

Haddad quer acabar com incentivos para painéis solares

Quem apostou na compra de painéis solares para gerar sua própria energia...

Economia

Gmail tem 183 milhões de senhas expostas; saiba se a sua foi afetada

Um novo megavazamento de dados expôs cerca de 183 milhões de endereços...